Sua organização já entendeu que privacidade e produto são a mesma coisa?

‎Por Thiago Vieira

Durante muito tempo, a privacidade foi tratada como um elemento periférico nas organizações. Algo a ser discutido depois que o produto estivesse pronto, como um detalhe jurídico ou um ajuste técnico de última hora. Mas essa lógica já não se sustenta, além do retrabalho em si, rever questões onde certamente irá envolver a base do produto traz um aumento de custo, tempo de implementação dos ajustes, revisão do escopo e podendo comprometer a qualidade:



Imagem: Triângulo das restrições (gerenciamento de projetos).


Em um mundo cada vez mais orientado por dados, a privacidade deixou de ser uma camada adicional — ela passou a ser parte indissociável da própria essência do produto. E mais do que isso: tornou-se um ativo estratégico, capaz de definir o sucesso ou o fracasso de uma solução no mercado.

O consumidor mudou. Hoje, ele está mais consciente sobre os riscos de seus dados circularem sem controle, mais sensível à reputação digital das marcas e mais exigente em relação à transparência. Ele não quer apenas um produto que funcione — quer um produto que o respeite. Isso significa que não é possível falar de valor de marca, experiência do usuário ou inovação sem considerar, desde o início, as decisões relacionadas à privacidade. E para entender mais sobre essa realidade de forma antecipada, a utilização dos dados é um fator imprescindível para conhecer ainda mais o consumidor, só que com isso voltamos ao looping inicial deste parágrafo. 

Ao desenvolver um aplicativo, um sistema de gestão ou uma interface de relacionamento com o cliente, as escolhas sobre coleta, uso, compartilhamento e descarte de dados devem estar no centro da arquitetura da solução. Privacidade não pode ser um “plug-in” que vem depois. Ela precisa estar no design, no código, na jornada, na lógica de negócios. Privacidade é funcionalidade. E, quando ignorada, compromete a usabilidade, a confiança e até a viabilidade legal do produto.

A legislação também reforça essa mudança de paradigma. Com a entrada em vigor da LGPD no Brasil e de regulações similares em todo o mundo, o não cumprimento das obrigações de proteção de dados passou a gerar riscos concretos: multas, restrições de operação, perda de reputação e ações judiciais. Mas reduzir a privacidade a um compliance jurídico é olhar apenas para a superfície. O verdadeiro impacto está na confiança. E confiança é o que sustenta qualquer produto de longo prazo, ou seja, garantindo a sua fidelidade.

Empresas que colocam a privacidade como diferencial estratégico ganham mais do que proteção jurídica — ganham lealdade. Ao explicitar com clareza o que fazem com os dados, ao oferecer escolhas reais ao usuário e ao investir em segurança e transparência, essas organizações constroem um relacionamento mais sólido e duradouro com seu público. É um “jogo” onde todos saem ganhando, poisE esse vínculo se traduz em retenção, recomendação e maior valor percebido.

A experiência do usuário também depende, diretamente, da forma como lidamos com seus dados. Interfaces invasivas, permissões excessivas, termos pouco claros e notificações frequentes sobre uso indevido geram frustração. No que reforça ainda mais o comprometimento de manter a conformidade com a lei, a jornada de privacidade é muito mais ampla do que somente o produto. Quando bem desenhada, a política de privacidade não atrapalha a jornada do cliente — ela melhora. Torna o uso mais claro, mais confortável e mais alinhado às expectativas do usuário.

As decisões sobre dados afetam até mesmo a estratégia de produto. Muitas organizações basearam seu crescimento no uso massivo e pouco transparente de informações pessoais. Mas esse modelo está esgotado. O futuro dos produtos digitais ou não exige criatividade para entregar valor com menos dados, com mais consentimento e com mais controle do usuário sobre o que é feito com suas informações. Isso exige outra mentalidade — uma mentalidade de privacidade como inovação entrelaçada com uma governança robusta , e não como limitação.

No desenvolvimento de produtos baseados em dados, como plataformas de recomendação, motores de busca ou sistemas preditivos, a governança dos dados é um componente crítico da entrega. Dados mal categorizados, armazenados sem propósito ou utilizados fora do contexto corroem a qualidade da solução e aumentam os riscos de uso indevido. Nesse sentido, a privacidade é também sobre eficiência. Quem trata dados com responsabilidade consegue extrair mais valor com menos ruído.

Outro ponto central é a arquitetura da tecnologia. Soluções baseadas em privacy by design e privacy by default não são apenas mais seguras — são mais escaláveis. Elas reduzem a complexidade das correções futuras, facilitam auditorias, simplificam adequações legais e preparam a empresa para responder com agilidade a mudanças regulatórias. Isso se traduz em velocidade e competitividade.

A liderança precisa incorporar esse entendimento. Privacidade não é responsabilidade exclusiva do jurídico ou da TI. Além do conflito de interesse que pode ocultar algumas falhas ou vulnerabilidades, eEla é uma dimensão estratégica que deve estar presente nas decisões de produto, marketing, experiência do cliente e inovação. O papel dos executivos, nesse contexto, é garantir que a cultura organizacional trate os dados dos clientes com o mesmo cuidado com que trata qualquer outro ativo da empresa.

A governança de dados deve incluir indicadores claros sobre privacidade. Métricas como grau de consentimento ativo, número de solicitações de exclusão atendidas, incidentes evitados, revisões de bases legais e testes de anonimização precisam entrar nos dashboards dos líderes. Porque o que não se mede, não se gerencia — e o que não se gerencia, vira risco.

Os desenvolvedores também têm papel crucial, o que reforça a importância de um programa de conscientização amplo. A codificação segura, o controle de acesso granular, o versionamento de dados e o uso de técnicas como minimização e pseudonimização devem fazer parte do repertório técnico desde os primeiros sprints de desenvolvimento. Não há mais espaço para a ideia de que segurança e privacidade são “coisas que a TI resolve depois”. A qualidade do produto depende diretamente dessas escolhas.

Na comunicação com o usuário, o desafio é construir uma linguagem clara, acessível e empática. Políticas de privacidade precisam deixar de ser textos jurídicos incompreensíveis para se tornarem instrumentos de empoderamento. O usuário quer saber o que está acontecendo com seus dados — e merece ter essa informação de forma compreensível. Design de informação e experiência de leitura passam a ser parte da solução.

Empresas que adotam essa abordagem não estão apenas evitando riscos — estão se posicionando como marcas do futuro. Em um mercado saturado de soluções similares, a confiança na proteção de dados pode ser o diferencial competitivo decisivo. E essa confiança não se compra com anúncios, mas se constrói com práticas coerentes, transparentes e constantes.

O relacionamento com parceiros e fornecedores também precisa refletir esse compromisso. A terceirização do tratamento de dados não elimina a responsabilidade do controlador. Todos os sistemas integrados, todas as APIs utilizadas, todos os fluxos compartilhados devem respeitar os mesmos padrões de privacidade exigidos internamente. Caso contrário, o elo mais fraco será o responsável por comprometer toda a cadeia.

Em ambientes de inovação rápida, como startups ou laboratórios de produto, o desafio é conciliar agilidade com responsabilidade. Isso só é possível quando a privacidade é incorporada como critério de design. Soluções que respeitam a privacidade desde o protótipo tendem a escalar com mais confiança, com menos retrabalho e com mais alinhamento às expectativas do mercado e dos reguladores.

A educação dos times é parte fundamental da maturidade em privacidade. Designers, PMs, analistas de dados e engenheiros precisam entender os fundamentos legais, técnicos e éticos da proteção de dados. Treinamentos recorrentes, fóruns de discussão e programas internos de conscientização ajudam a construir uma cultura onde a privacidade não é um obstáculo, mas uma diretriz.

Em última instância, a privacidade deixou de ser um tema jurídico ou técnico e se tornou uma questão de posicionamento de marca, podendo ser até um diferencial de mercado, vide exemplo de campanhas como Itaú e Lego. Organizações que assumem a responsabilidade sobre os dados de seus usuários demonstram respeito, ética e visão de futuro. E, nesse novo cenário, o principal produto de uma empresa não é mais apenas o que ela vende — é a confiança que ela inspira.

Não existe mais separação entre privacidade e produto. As duas dimensões são uma só. E quanto mais cedo as organizações entenderem isso, mais preparadas estarão para competir em um mercado que valoriza quem protege, e não apenas quem entrega. A privacidade é, agora, parte da experiência. E a experiência é, cada vez mais, parte do valor.

Thiago-Vieira

CONSELHEIR@

Thiago Vieira

Experiência de 17 anos de carreira nas áreas de Governança, com atuação destacada em Compliance, Gestão de Riscos e Auditoria. Abrange também Segurança da Informação, Proteção de Dados Pessoais, Melhoria Contínua, Auditoria de Certificação, Controles Internos, Continuidade de Negócio e Governança de TI. Foco em empresas de grande porte e alto fluxo de informação, atuantes no setor de mídia (radiodifusão), telecom, saúde e financeiro.

Como Data Protection Officer (DPO) desde a divulgação da LGPD, atuou no SBT e na Prevent Senior, onde liderou a transformação da governança em privacidade de dados, criando e implementando uma estrutura robusta e de alto desempenho.  Com visão estratégica, garantiu a aderência à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e outras normas, através de auditorias internas e da promoção de uma cultura de conformidade sustentável.

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