O Brasil está explorando todo o potencial do conhecimento e da inovação nas ciências da vida com as agtechs e healthtechs?

‎Por Alexandre Comin

A combinação entre conhecimento científico e inovação tecnológica nas ciências biológicas têm provocado transformações profundas no modo de vida, seja nos modelos de cuidado com a saúde humana seja na sustentabilidade da produção de alimentos. No centro desse movimento, as agtechs e healthtechs vêm ocupando um papel estratégico, não apenas como startups disruptivas, mas também como catalisadoras de um novo paradigma, no qual a ciência básica, os dados, a inteligência artificial e a biotecnologia convergem para oferecer soluções a alguns dos maiores desafios globais. A pergunta que se impõe é se estamos, de fato, explorando todo esse potencial com a devida profundidade e visão de longo prazo.

As agtechs têm revolucionado o modo como entendemos a agricultura e a cadeia alimentar. Elas operam na interseção entre ciência do solo, meteorologia, engenharia genética e análise de dados. O resultado é uma agricultura mais eficiente, precisa e consciente dos limites ambientais. Sensores aplicados ao solo, drones que mapeiam plantações, plataformas que recomendam o melhor momento para irrigar ou colher e sistemas de previsão de pragas baseados em IA já fazem parte do dia a dia de milhares de produtores. A produtividade aumenta, o desperdício diminui e a resiliência climática ganha fôlego.

No campo da saúde, as health techs representam uma verdadeira disrupção no acesso, na prevenção e na personalização do cuidado. São plataformas de telemedicina, dispositivos vestíveis, aplicativos de gestão de saúde, algoritmos diagnósticos, tecnologias de imagem com aprendizado profundo e soluções baseadas em genética e dados clínicos. A lógica da medicina muda: sai o modelo reativo centrado no hospital, entra o modelo preditivo, distribuído e centrado no paciente. A jornada de cuidado passa a ser contínua, conectada e cada vez mais personalizada.

O principal ponto comum entre agtechs e healthtechs é o uso intensivo do conhecimento como matéria-prima. São iniciativas que nascem do cruzamento entre pesquisa científica, problemas reais e a ousadia empreendedora. Não se trata de inovação pela inovação, mas de inovação com propósito. Esse alinhamento é essencial para garantir que os avanços tecnológicos sejam sustentáveis, escaláveis e gerem impacto positivo, tanto em termos sociais quanto ambientais. E aqui, o papel das universidades e centros de pesquisa se torna ainda mais estratégico, pois eles funcionam como núcleos de geração de conhecimento de ponta que, quando conectados ao ecossistema de startups, geram inovação aplicada com alto valor agregado.

Outro aspecto relevante da inovação nos bens e serviços voltados à sustentabilidade das diversas formas de vida é a necessidade de coleta e tratamento de dados da maior quantidade possível de pessoas e dos seres que coabitam seus corpos (healthtechs) e das demais criaturas da natureza relevantes para o modo de vida contemporâneo (agtechs). As ciências da vida não são exatas como as da física ou química, precisam de muita estatística para avançar o conhecimento e assim criar e aperfeiçoar soluções eficazes e confiáveis.

A inovação nas ciências da vida, porém, exige um ciclo virtuoso de pesquisa, investimento, regulação, validação e aceitação pelo mercado. As soluções desenvolvidas por agtechs e healthtechs enfrentam um ambiente de alta complexidade regulatória, rigorosas exigências de comprovação científica e, muitas vezes, longos ciclos de maturação tecnológica e de testagem. Isso requer paciência de capital, maturidade de gestão e uma visão estratégica que vá além da aceleração imediata. Investidores e formuladores de políticas públicas precisam entender essa lógica para fomentar um ambiente propício ao crescimento consistente dessas iniciativas.

Outro ponto central é a governança dos dados. Tanto no agronegócio quanto na saúde, os dados são sensíveis, valiosos e, se mal utilizados, podem gerar assimetrias de informação e violações éticas graves. Garantir a segurança, a privacidade, a interoperabilidade e o consentimento informado é condição básica para o avanço das soluções tecnológicas. A confiança é o ativo mais importante em um ecossistema onde algoritmos tomam decisões que afetam diretamente a vida, o bem-estar e a nutrição das pessoas.

A interoperabilidade é, aliás, um dos maiores desafios e oportunidades para as agtechs e healthtechs. Em muitos contextos, os sistemas não se comunicam, os dados ficam presos em silos e a informação se perde. Promover padrões abertos, incentivar a integração de plataformas e criar incentivos para a colaboração entre diferentes agentes do ecossistema é um passo fundamental para gerar uma visão sistêmica das cadeias de valor nas ciências da vida.

Um diferencial das healthtechs e agtechs de ponta é sua capacidade de atuar em redes que incluem as universidades, os centros de pesquisa, as agências de financiamento, os órgãos reguladores, as empresas do campo e da cidade e os consumidores/pacientes. A inteligência distribuída é uma das marcas desse tipo de inovação: soluções construídas de forma colaborativa, com múltiplos parceiros, operando em diferentes territórios, adaptáveis a realidades distintas e evolutivas por natureza. Essa lógica em rede fortalece a resiliência, aumenta a capilaridade e acelera a difusão do conhecimento, reduzindo o tempo entre descoberta e impacto.

No caso das healthtechs, essa lógica já começa a transformar a relação médico-paciente, a estrutura dos sistemas de saúde e os próprios modelos de negócio das operadoras. Quando uma empresa consegue prever surtos de doenças com base em dados populacionais, ajustar protocolos com base em evidência em tempo real ou acompanhar pacientes crônicos remotamente com alta adesão, ela está desenhando o futuro do cuidado. A ciência de dados torna-se uma aliada da medicina baseada em evidências e o paciente se torna um agente decisivo da manutenção de sua própria saúde.

Nas agtechs, a transformação também é visível na adoção de modelos baseados em sustentabilidade regenerativa. Tecnologias que mapeiam o carbono do solo, que otimizam o uso de água e que integram práticas de conservação da biodiversidade começam a ganhar espaço em escala. O agro que surge com essas soluções é mais conectado, mais transparente e mais preparado para enfrentar os impactos das mudanças climáticas. É a ciência ajudando o campo a produzir mais, com menos, e de forma mais consciente.

A inserção dessas startups nos mercados globais também é uma realidade. Healthtechs brasileiras, por exemplo, já operam em mercados regulados da Europa e dos Estados Unidos, o que demonstra a maturidade científica, a qualidade técnica e o potencial de internacionalização do ecossistema nacional de inovação em biotecnologia. A retomada nos últimos anos dos investimentos em inovação em saúde no Governo Federal e o amadurecimento de iniciativas estaduais, como o Instituto Butantan em São Paulo, bem como a expansão de grupos privados, como a Oncoclínicas, por exemplo, vem impulsionando a internacionalização do setor no Brasil.

As agtechs, por sua vez, ocupam há mais tempo um espaço de grande relevância em cadeias produtivas de alimentos e de bioenergia, exportando inteligência e tecnologia embarcada num volume crescente de commodities agropecuárias.

Isso posiciona o Brasil como protagonista emergente da inovação nas ciências da vida. Apesar dos muitos desafios que permanecem. O Brasil foi capaz de criar ao longo das décadas instituições que foram decisivas para chegarmos até aqui: Embrapa e Fiocruz são apenas os exemplos mais conhecidos. Mas faltam políticas públicas integradas, mecanismos de fomento contínuo, programas de formação específicos e ambientes regulatórios mais ágeis para que todo o potencial de inovação do país possa fluir na escala e velocidade que os desafios globais exigem.

Faltam também estratégias mais claras de aproximação entre ciência e mercado, entre conhecimento e aplicação, entre instituições de pesquisa e empresas. As iniciativas bem-sucedidas são, em muitos casos, fruto de esforços individuais ou de ecossistemas isolados. O desafio é transformar casos pontuais em movimentos estruturados.

Precisamos reconhecer como país a inovação nas ciências da vida como um pilar estratégico de desenvolvimento em suas três dimensões: econômica, social e ambiental. Isso significa reconhecer o potencial das agtechs e healthtechs como parte de uma economia do conhecimento que combina pesquisa, tecnologia, impacto e propósito. Significa criar um ambiente onde o erro seja visto como parte do aprendizado, onde a colaboração seja incentivada e onde a visão de futuro não esteja subordinada apenas à próxima rodada de captação. Papel crucial aqui é o do chamado financiamento misto (blended finance) no qual os recursos de fomento públicos e filantrópicos mobilizam o capital privado para investimentos que sejam ao mesmo tempo rentáveis e positivos para a sociedade e para o meio ambiente.

A formação de talentos também precisa acompanhar essa evolução. Profissionais capazes de transitar entre a ciência e o empreendedorismo, entre os dados e o impacto social, entre a biotecnologia e a ética, serão cada vez mais demandados. E isso exige novas abordagens de ensino, de pesquisa aplicada e de engajamento com a sociedade.

O futuro das ciências da vida será, inevitavelmente, intersetorial e interdisciplinar. As fronteiras entre as tecnologias da saúde, do meio ambiente e da alimentação são cada vez mais fluídas, criando e requerendo um novo campo de atuação: o da inovação que nasce do conhecimento profundo, da colaboração em rede e da vontade genuína de transformar. Agtechs e healthtechs são, nesse contexto, não apenas startups, mas também vetores de um futuro mais inteligente, mais humano e mais sustentável.

Alexandre-Comin

CONSELHEIR@

Alexandre Comin

Sou economista pela USP desde 1985 e Doutor em Economia pela Unicamp com Doutorado Sanduíche pela Université Paris XIII.

Fui Gerente da Unidade de Capitalização e Acesso a Serviços Financeiros do Sebrae Nacional entre agosto de 2015 e dezembro de 2018.

Sou atualmente Assessor da Presidência da FAPESP e Consultor Sênior da Dinamus Consultoria na área de indústria, negócios internacionais e inteligência competitiva.

Fui Secretário-Adjunto da Secretaria de Desenvolvimento da Produção e Diretor do Departamento de Competitividade Industrial e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Decoi/SDP/MDIC) entre 2011 e março de 2015.

Anteriormente fui Analista Sênior da Confederação Nacional da Indústria (CNI) responsável pela estruturação da área de política industrial.

Antes disso, desenvolvi em São Paulo carreira acadêmica na PUC/SP e de consultoria a diversas organizações públicas e privadas.

Sou autor de diversos livros e artigos em publicações nacionais e estrangeiras em temas como desenvolvimento econômico, comércio exterior, economia industrial, entre outros.

 

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