Estamos preparados para a disrupção e concentração nos fundos de pensão?

‎Por Marise Gasparini

O cenário dos fundos de pensão passa por uma transformação silenciosa, mas estrutural, impulsionada por dois vetores simultâneos: disrupção tecnológica e crescente concentração de mercado. A primeira muda radicalmente o modo como os recursos são geridos, avaliados e comunicados. A segunda redefine o equilíbrio de poder entre grandes fundos de pensão, patrocinadores, gestores e participantes, com implicações profundas na governança, na profissionalização da gestão, no poder de negociação, na capacidade de investimento e na transparência. Essas forças, embora distintas, se entrelaçam ao criar pressões por eficiência, escala e inovação em um setor historicamente conservador e bastante regulado.

A digitalização acelerou a capacidade dos fundos de coletar, processar e analisar dados em tempo real, oferecendo ao gestor novas ferramentas para a tomada de decisão. Ao mesmo tempo, tecnologias como inteligência artificial e blockchain começam a ser exploradas para automatizar processos, mitigar riscos operacionais, aperfeiçoar a comunicação e elevar a precisão das projeções atuariais. Esse avanço traz consigo um novo tipo de responsabilidade: a necessidade de garantir que a sofisticação tecnológica não se sobreponha à clareza e à confiança dos participantes nos mecanismos de governança. Este segmento ainda possui significativa parcela de participantes com baixo conhecimento tecnológico, o que dificulta a sua inclusão e participação ativa no monitoramento de seus recursos confiados a terceiros. Um ponto crucial diz respeito à percepção dos participantes sobre as mudanças. A concentração pode gerar ganhos de escala e eficiência, mas também acentuar o distanciamento entre os tomadores de decisão e os beneficiários finais. A disrupção tecnológica, por sua vez, exige alfabetização digital mínima para que o participante compreenda os relatórios, interaja com as plataformas e tome decisões bem fundamentadas sobre seu futuro previdenciário.

A concentração, por sua vez, se dá tanto entre fundos de pensão,  quanto entre gestoras dos passivos previdenciais  e recursos aplicados junto aos gestores. Com margens apertadas e exigências regulatórias cada vez maiores, fundos de pensão menores têm sido estimulados a buscar fusões ou migrado para modelos de gestão terceirizada, geralmente com grandes fundos multipatrocinados. Isso gera um efeito colateral: a concentração dos recursos previdenciários nas mãos de poucos atores, o que pode enfraquecer a competição, aumentando as taxas administrativas para gestão do ativo e passivo dos planos de aposentadoria e reduzir a diversidade de estratégias, tornando o sistema mais vulnerável a choques sistêmicos.

Esse novo ambiente também redefine o papel dos conselhos deliberativos e fiscais. Diante de estruturas mais complexas e decisões mais técnicas, aumenta a pressão para que os conselheiros sejam mais qualificados, independentes e informados. A governança tradicional, centrada na representatividade dos participantes ou do desejo das patrocinadoras em manter o controle da entidade de previdência, indicando a maioria dos representantes nos conselhos, conforme permitido pela legislação,  começa a dividir espaço com a governança técnica, mais voltada à performance e ao controle de riscos. A tensão entre essas duas forças precisa ser equilibrada com sabedoria.

O modelo de comunicação tradicional dos fundos, baseado em boletins impressos, apresentações presenciais, e linguagens técnicas, uniformizados, sem considerar as características dos planos de benefícios e o perfil dos participantes,  já não atende a uma geração que consome informação por aplicativos e redes sociais. A nova realidade exige personalização, transparência e diálogo contínuo, sob o risco de perder engajamento em um momento no qual a confiança é mais valiosa do que nunca.

A eficiência operacional, tão valorizada nos últimos anos, precisa agora conviver com uma visão estratégica mais ampla, que contemple o impacto de longo prazo das decisões sobre o perfil de risco dos planos, sua sustentabilidade e a reputação institucional. A governança baseada apenas em corte de custos ou rentabilidade imediata perde de vista o propósito central dos fundos: garantir segurança e dignidade na aposentadoria.

O avanço da tecnologia permite simulações cada vez mais refinadas dos planos de benefício, consultas a saldos, prestação de contas, comunicados sobre seus investimentos e suporte personalizado, mas também evidencia o risco de decisões equivocadas ganharem escala rapidamente. A concentração agrava esse risco, ao reduzir os pontos de controle e centralizar a lógica de alocação de ativos. É fundamental que haja instâncias independentes capazes de auditar, questionar e propor alternativas.

A experiência internacional mostra que fundos mais robustos tendem a adotar soluções próprias de tecnologia e análise de dados, criando estruturas internas de inteligência competitiva, além de possuírem uma governança forte com conselhos independentes, gestão de investimentos profissional e práticas de transparência e prestação de contas. Entidades menores, no  Brasil, ainda não incorporaram  essas práticas e, e  dependem de terceiros para serviços-chave. Esse desequilíbrio pode comprometer a autonomia dos fundos e elevar o risco de conflitos de interesse,, até porque, nesse setor, os fornecedores são limitados, o que facilita a concentração.

Além disso, a concentração de ativos em poucos fundos ou gestoras pode gerar um efeito de manada no mercado financeiro. Se todos seguem as mesmas estratégias, os ciclos de alta e baixa são amplificados, podendo prejudicar tanto o sistema como um todo quanto o participante individual. A diversidade de portfólios, modelos e culturas de gestão é um dos principais pilares de resiliência dos sistemas previdenciários.

A disrupção, por outro lado, traz oportunidades relevantes de diferenciação. Fundos que investem em inovação podem oferecer serviços personalizados, melhorar a experiência do usuário e ampliar a previsibilidade de alcance das metas atuariais. Há espaço para startups do setor, as chamadas “pensiontechs”, que propõem soluções em open data, modelagem preditiva e educação financeira digital, apoiando a gestão das entidades com produtos sob medida para os planos administrados a um custo competitivo.

O desafio é que a transformação não pode ser apenas cosmética. Inserir tecnologia sem redesenhar processos, revisar governança e qualificar as pessoas tende a gerar apenas uma camada a mais de complexidade, sem ganhos reais de valor. A cultura das entidades precisa se abrir para experimentação responsável, sem perder o compromisso com a segurança e o dever fiduciário.

Na dimensão regulatória, a concentração e a disrupção colocam novos desafios. Os órgãos supervisores e fiscalizadores precisam ser ágeis para acompanhar a sofisticação do mercado sem engessá-lo. Ao mesmo tempo, devem garantir a heterogeneidade  entre fundos grandes e pequenos, respeitando suas especificidades, evitando exigências não alinhadas ao desenho dos planos administrados e evitando assimetrias competitivas que aceleram ainda mais o processo de consolidação, sem avaliar suas consequências e propor medidas de controle.

A agenda ESG também entra nesse debate. Fundos de pensão têm papel estratégico como investidores institucionais, podendo direcionar recursos para ativos sustentáveis e pressionar empresas por melhores práticas. Mas isso exige governança ativa, dados confiáveis, estrutura técnica e custos compatíveis para as entidades  menores, pois, de outra forma, poderiam ser excluídas dessa alternativa.. 

Em um momento de mudança demográfica e aumento da longevidade, a eficiência financeira dos fundos se torna ainda mais crítica. Decisões equivocadas hoje poderão trazer reflexos por décadas, afetando não apenas os aposentados atuais, mas também os futuros. É nesse contexto que a governança, a transparência e a capacidade de adaptação tecnológica se tornam centrais para a perenidade do sistema.

Por fim, a disrupção e a concentração nos fundos de pensão não são fenômenos isolados, mas sintomas de um novo paradigma. O setor precisa se reinventar sem perder sua essência: servir ao participante com responsabilidade, ética e visão de longo prazo. Ignorar essa necessidade de transformação é abrir mão do futuro. Mas embarcar nessa jornada sem critério é correr riscos desnecessários. O equilíbrio entre inovação e prudência será, mais do que nunca, a verdadeira chave do sucesso.

Marise-Gasparini

CONSELHEIR@

Marise Gasparini

Economista formada pela Universidade Federal do Espírito Santo, com Pós Graduação em Mercado de capitais e Mestrado em Administração em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas, especialização em Fundos de Pensão pela The Wharton School, University of Pennsylvania. Trajetória profissional de cerca de 30 anos dedicados a área de previdência complementar, em atividades diretivas e de assessoramento às empresas patrocinadoras dos planos de aposentadoria, e passagem por empresas como Aracruz Celulose, Abrapp, Itaú Soluções Previdenciárias, EDP Energias do Brasil, em posições de Diretora ou Presidente dos respectivos Fundos de Pensão, buscando compatibilizar os interesses dos participantes, das empresas e do órgão regulador governamental, tendo se engajado nos esforços pelo crescimento e aperfeiçoamento da política de seguridade social do País e do sistema de Previdência Complementar. Atualmente é Conselheira Deliberativa do Multibra Multipensions.

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