Como transformar a mentalidade esportiva em uma plataforma de excelência para a vida?

‎Por André Heller

A trajetória de um atleta não se encerra quando ele pendura as chuteiras ou deixa as quadras. Pelo contrário, esse momento marca o início de uma nova etapa que, quando bem conduzida, pode representar um dos ciclos mais ricos e transformadores de sua existência. A célebre frase de Paulo Roberto Falcão de que “o atleta morre duas vezes” traduz com precisão o desafio emocional e existencial enfrentado por muitos ao final da carreira esportiva. Mas será mesmo que precisa ser uma “morte” ou pode ser uma transição? Essa resposta depende, essencialmente, da postura de protagonismo e autonomia adotada ao longo da jornada.

O cenário do alto rendimento, por sua própria natureza, fomenta uma lógica de exclusividade e intensidade, em que o foco absoluto no desempenho ofusca outras dimensões da vida. Rotinas exaustivas, metas elevadas, prêmios e pódios constroem uma narrativa poderosa, mas muitas vezes limitadora. O atleta, imerso nesse universo, corre o risco de alienar-se, de não vislumbrar possibilidades para além da performance. Essa alienação, como abordada sob a ótica filosófica e marxista, revela-se como um distanciamento crítico, uma reprodução passiva de padrões impostos. Mas e se o próprio atleta passasse a enxergar sua carreira como um empreendimento? Se tomasse para si a responsabilidade de ser gestor, investidor e estrategista do seu próprio caminho?

A interseção entre o esporte e o empreendedorismo torna-se evidente quando observamos os pilares que sustentam ambos: protagonismo, gestão de riscos, inovação e busca por resultados sustentáveis. Cada competição, cada treino, cada desafio superado representa um pequeno empreendimento, uma operação em que o atleta é, simultaneamente, o produto e o empreendedor. Ao internalizar essa perspectiva, amplia-se o olhar para além do jogo ou da prova. Surge a consciência de que a carreira esportiva é apenas uma parte de um portfólio maior: a vida como um projeto integrado de desenvolvimento.

Empreender na própria carreira significa assumir as rédeas das decisões, escolher os caminhos com base em valores e objetivos pessoais, e não apenas reproduzir expectativas externas. É a capacidade de transformar cada habilidade cultivada no esporte — disciplina, resiliência, foco, cooperação — em ativos estratégicos para outras áreas. E mais: é reconhecer que o encerramento de uma fase competitiva não é sinônimo de perda de valor, mas de redirecionamento de energia e propósito. Quando o atleta passa a atuar com essa mentalidade, ele incorpora o mindset empreendedor que, segundo Longenecker e Schoen, valoriza a autonomia, a inovação e a gestão consciente dos recursos em cenários incertos.

Contudo, essa virada de chave exige autoconhecimento profundo. Sem conhecer seus próprios talentos, competências e limitações, o atleta corre o risco de perpetuar a alienação mesmo fora das quadras. O autoconhecimento funciona como o “balanço patrimonial” da vida, identificando ativos e passivos pessoais, norteando decisões estratégicas. Como demonstram as teorias de Howard Gardner e Daniel Goleman, a autoconsciência é a base da inteligência emocional, e, por consequência, da capacidade de liderança, adaptação e reinvenção.

Ao compreender suas forças e pontos de melhoria, o atleta cria condições para investir nos próprios talentos, transformando-os em pontos fortes — como explicita a fórmula talento vezes investimento igual a ponto forte, proposta pelo Instituto Gallup. Esse investimento demanda não apenas prática, mas também aprendizado contínuo, benchmarking com os melhores, busca ativa por mentoria e disposição para desaprender o que não mais serve. Foi assim que grandes líderes esportivos, como o próprio autor dos textos analisados, reinventaram-se após momentos de adversidade, transformando cortes e derrotas em oportunidades de crescimento e liderança.

Essa jornada de autodescoberta e empoderamento amplia o repertório do atleta-empreendedor. Ele passa a compreender que planejar o futuro, investir em capacitação continuada, construir redes de apoio e desenvolver inteligência emocional são competências tão cruciais quanto a técnica esportiva. A excelência, nesse novo paradigma, não se resume ao pódio, mas ao equilíbrio entre todas as áreas da vida. É a habilidade de perseguir objetivos elevados sem abandonar outras dimensões significativas, como alertou Terry Orlick ao diferenciar “a única coisa que importa” da “coisa mais importante”.

No universo atual, volátil, incerto e complexo, o atleta que adota essa visão empreendedora constrói resiliência diante das inevitáveis transições. Ele não apenas se prepara para o “fim” da carreira esportiva, mas transforma esse marco em uma oportunidade de expansão, diversificação e legado. Reconhece que o esporte foi, e sempre será, uma plataforma de aprendizado e desenvolvimento, mas não a única. E, ao cultivar essa consciência, evita o risco da alienação, ampliando seu protagonismo para além das quadras.

A analogia com o empreendedorismo reforça a necessidade de planejamento, visão estratégica e atitude proativa. Assim como um empreendedor analisa cenários, identifica oportunidades e assume riscos calculados, o atleta-empreendedor precisa mapear possibilidades, investir em novos conhecimentos e atuar com pragmatismo. Isso não significa eliminar os riscos, mas gerenciá-los com discernimento e coragem.

A experiência esportiva oferece um terreno fértil para desenvolver competências essenciais ao empreendedorismo: lidar com a pressão, trabalhar em equipe, buscar excelência, superar adversidades. Essas habilidades, quando transferidas para outros contextos, potencializam o impacto do atleta em diferentes esferas. Mais do que um ex-atleta, ele se torna um agente de transformação, um profissional plural capaz de atuar em negócios, educação, saúde, gestão ou qualquer outra área onde sua bagagem encontre propósito.

Entretanto, essa transição não ocorre de forma automática. Ela requer intencionalidade, reflexão e ação estratégica. Exige abandonar a zona de conforto construída ao longo de anos de rotina esportiva para explorar novos territórios, muitas vezes desconhecidos e desafiadores. Mas é justamente nessa ousadia que reside o potencial de reinvenção. O processo de se “reeducar” para o novo mundo pós-carreira demanda humildade para aprender, coragem para tentar, e persistência para superar os obstáculos inerentes ao novo ciclo.

O caminho do atleta-empreendedor também passa por reconhecer que a jornada não precisa ser solitária. Construir uma rede de apoio, cercar-se de mentores, buscar trocas qualificadas com profissionais de diferentes áreas fortalece o processo de transição e amplia as oportunidades de sucesso. Afinal, no empreendedorismo, como no esporte, ninguém vence sozinho. As vitórias são fruto de esforços coletivos, parcerias estratégicas e sinergias bem construídas.

Por fim, entender que excelência não é um destino, mas um processo contínuo de aprimoramento, transforma a relação com a própria trajetória. A excelência passa a ser medida não apenas pelos resultados visíveis, mas pelo alinhamento entre valores, propósito e ações. O atleta que internaliza essa filosofia transforma cada desafio em uma chance de crescimento, cada meta em um degrau para novos horizontes, cada etapa em uma contribuição única para sua história.

Transformar a mentalidade esportiva em uma plataforma de excelência para a vida exige coragem, consciência e ação. É o convite para que todo atleta, em qualquer fase da carreira, assuma o protagonismo da própria história, colecione resultados além das medalhas e construa um legado que transcenda o esporte. É a jornada de quem compreende que a verdadeira vitória está em tornar-se, a cada dia, a melhor versão de si mesmo.

André-Heller

CONSELHEIR@

André Heller

André Heller tornou-se Campeão Olímpico em Atenas 2004 pela Seleção Brasileira de Vôlei. Foi atleta profissional por 24 anos, sendo 12 dedicados à Seleção. Entre os títulos conquistados ao longo da sua trajetória esportiva, destaque para o título do Campeonato Mundial em 2006, 6 Medalhas de Ouro em Ligas Mundiais, 4 títulos Sul-Americanos, 2 medalhas de ouro em Copas do Mundo e 2 Copas Américas, 1 Medalha de Ouro no pan-americano 2007, Medalha de Prata nos Jogos Olímpicos de Pequim, na China, além de ter participado de 5 títulos da Superliga Brasileira.

Graduado em Empreendedorismo – Universidade Paulista, especializou-se nas áreas de Gestão Aplicada ao Esporte – FIA/USP, Brain Based Coaching – Instituto Fellipelli / Neuroleadership Institute, Inteligência Emocional – Multi Health Systems e CliftonStrenghts – Ynner / Instituto GALLUP.

LinkedIn
Twitter
Facebook
WhatsApp
Email

Quem também está com a gente

Empresas, Startups, Centros de Pesquisa e Investidores