Nos últimos anos, o ambiente de startups tem se tornado um dos alvos preferenciais de processos de fusões e aquisições (M&A), especialmente no setor de tecnologia. No entanto, integrar culturas, sistemas e estruturas de empresas tão diferentes tem se mostrado um desafio crítico para a criação de valor sustentável no pós-aquisição. Este artigo traz os achados de uma pesquisa aplicada em uma startup brasileira de logística, fundada em 2018, que passou por um processo de M&A em 2021, sendo adquirida por uma grande empresa do setor. A startup conectava pequenos lojistas do e-commerce a grandes transportadoras por meio de uma solução digital e, antes da aquisição, operava com alta autonomia, cultura ágil e uma estrutura de controladoria enxuta e diretamente integrada às decisões operacionais. Após a aquisição, a startup foi incorporada ao modelo corporativo da empresa compradora, com centralização dos controles, aumento do foco em compliance e maior exigência por reportes. A pesquisa teve como objetivo compreender os impactos dessa mudança na função da controladoria e propor um modelo mais adequado à realidade pós-M&A.
A abordagem metodológica foi qualitativa, com base em estudo de caso único e aprofundado. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com sete executivos — incluindo CEO, VP, diretores de unidades de negócio e gestores de controladoria e contabilidade — com atuação direta antes e depois da aquisição. A amostra contemplou todos os principais líderes das três unidades de negócio da empresa, garantindo representatividade. Os dados foram organizados em cinco dimensões principais: estágio da controladoria antes da integração, estágio após a integração, percepção sobre gaps entre o modelo atual e o modelo ideal, frequência de comunicação com as áreas de negócio e expectativas futuras quanto ao papel do controller. Entre os principais achados, destacam-se as diferenças entre o modelo enxuto e estratégico da startup pré-M&A e o modelo mais tradicional, centralizado e mais controlador no pós-M&A.
Entre os principais achados, destacam-se as diferenças entre o modelo enxuto e estratégico da startup pré-M&A e o modelo mais tradicional, centralizado e reativo imposto no pós-M&A. A controladoria da startup, antes autônoma e integrada às squads, perdeu capacidade de influência após a integração. Os reportes passaram a ser padronizados, a comunicação com os times operacionais reduziu-se drasticamente, e o foco se voltou quase exclusivamente para o compliance. Segundo o modelo de Weber (2011), a controladoria regrediu do estágio de cogestora para uma função mais operacional. Tabelas construídas na pesquisa indicaram que antes da integração a controladoria participava ativamente da estratégia das unidades. Após o M&A, os profissionais relataram burocratização, padronização excessiva e perda de agilidade, resultando em menor contribuição no processo decisório.
Tabela 1 – Comparação das atividades da controladoria antes e depois da integração.
Dimensão | Antes da Integração | Depois da Integração |
Proximidade com o negócio | Alta (atuação em squads) | Baixa (estrutura centralizada) |
Velocidade de decisão | Alta | Reduzida (burocratização) |
Tipo de controle | Flexível, adaptável | Rígido, voltado à padronização |
Geração de insights | Ativa, com influência nas decisões | Passiva, com foco em relatórios |
Comunicação com as áreas operacionais | Diária e informal | Semanal e formalizada via reportes |
Papel percebido da controladoria | Parceira de negócios | Executora de processos |
Além disso, a pesquisa evidenciou uma queda na frequência de interação da controladoria com os líderes das áreas de negócio, com impacto direto na qualidade das decisões.
A Tabela 2 – Frequência de interação entre a controladoria e áreas de negócios
Interação com áreas de negócio | Frequência antes do M&A | Frequência após o M&A |
Reuniões com squads operacionais | Diárias | Eventuais |
Participação em reuniões de decisões | Frequente | Ocasional |
Geração de relatórios customizados | Ágil, sob demanda | Padronizada e periódica |
Síntese dos achados
a) A Complexidade de uma grande empresa: Após integração de uma startup em uma multinacional é notório o aumento da complexidade dos temas, processos e departamentos. O aumento da complexidade e por consequência mais controle pode prejudicar o entendimento do papel da controladoria. Corroborando com esse aspecto (DePamphilis, 2018), diz que quanto maior a empresa, mais difícil se torna manter uma visão integrada e mais complexa se torna a compreensão de papéis e responsabilidades das áreas.
b) Aumento do Compliance: Kaplan e Norton (1996) enfatizam a importância do alinhamento com normas regulatórias para garantir sustentabilidade do negócio para ambientes e empresas complexas. Nesse sentido, com a integração da startup em uma grande empresa, pode ocasionar um maior foco em atividades regulatórias impactando o papel da controladoria como parceiro de negócios pela necessidade de atender a requisitos corporativos e regulatórios, como os da SEC, conforme indicado nas entrevistas.
c) Foco nas funções mais tradicionais da controladoria: O estudo de Souza, Wanderley e Horton (2020) ressaltam que à medida que as empresas crescem, a função da controladoria se torna mais centralizada e focada em controles internos, como apuração e validação contábil, de forma que a integridade das informações financeiras seja garantida. Com essa visão, conforme entrevistas, é possível enxergar que a controladoria da startup, ao ser integrada, assumiu um papel mais importante em termos de controle e validação de dados.
d) Perda de visibilidade da Unidade de negócio (startup): A startup, agora uma unidade menor dentro de uma grande corporação, pode não receber a mesma atenção dedicada a outras áreas, consideradas mais estratégicas. Isso leva a uma perda de influência e a um distanciamento do processo decisório, impactando negativamente a agilidade e a proatividade da controladoria. (Maas & Matejka, 2009) exploraram como a complexidade organizacional e a fragmentação das unidades podem impactar a integração e a comunicação interna, reduzindo a eficácia e a capacidade de resposta rápida.
A partir desses achados, foi possível identificar um desalinhamento entre as expectativas dos executivos e o novo papel assumido pela controladoria. Os líderes entrevistados destacaram que o modelo anterior era mais próximo, integrado e estratégico, enquanto o modelo pós-integração priorizava controle, compliance e padronização. O estudo usou como referência o modelo de estágios da controladoria proposto por Weber (2011), no qual a função evolui de “fabricante de dados” até o papel de “parceiro de negócios”. Segundo os entrevistados, a controladoria da startup operava no estágio 3 (Cogestão), enquanto a integração a levou de volta ao estágio 1 (Controle operacional e reportes básicos).
A partir desses achados, foi proposta uma nova estrutura de controladoria financeira para o cenário pós-M&A. A proposta consiste em três camadas complementares: (1) um hub corporativo central responsável por compliance, consolidação e governança; (2) hubs de controladoria descentralizados, alocados nas unidades de negócio, atuando como Business Partners; e (3) uma camada tecnológica de BI e dashboards que integra os dados e garante comunicação em tempo real entre todas as partes.
O Modelo Proposto: Uma Nova Estrutura de Controladoria Financeira Pós-M&A
Com base na análise empírica e no embasamento teórico, foi proposta uma estrutura híbrida de controladoria que responda tanto às exigências de governança da empresa compradora quanto à necessidade de agilidade e integração exigida pelas unidades de negócio. O modelo é composto por três componentes principais:
- Hub Corporativo de Governança: Localizado na matriz da empresa compradora, é responsável por compliance, auditoria, entrega de reportes obrigatórios, consolidação de resultados e interface com investidores. Seu foco é atender os requisitos regulatórios e de governança corporativa, com rigidez e padronização.
- Células Descentralizadas de Controladoria (Hubs por Unidade de Negócio): Equipes alocadas diretamente junto às três unidades de negócio (Transportes, Points e Marketplace), atuando como Business Partners. Essas células participam das reuniões de squads, apoiam na construção dos OKRs, traduzem os números em insights operacionais e colaboram diretamente com os gestores de produto, operações e marketing.
- Plataforma Integrada de Dados e Performance: Uma camada tecnológica comum, composta por dashboards e relatórios em tempo real via BI, que permite visão unificada da performance de cada unidade e facilita o alinhamento entre a controladoria descentralizada e o hub corporativo. Essa camada elimina retrabalho, mitiga ruídos e promove transparência entre as áreas.
Essa estrutura visa preservar o melhor dos dois mundos: mantém o rigor exigido pela corporação e devolve à controladoria seu papel de cogestora próxima das decisões. As células locais funcionam como “intérpretes financeiros” para as áreas, traduzindo os dados em ações e acompanhando indicadores de performance (KPIs) alinhados ao planejamento estratégico. A camada tecnológica garante que todos operem com base na mesma “versão da verdade”.
O estudo confirma que o sucesso de uma integração pós-M&A não depende apenas da consolidação de sistemas e processos, mas da capacidade de preservar o valor gerado pela cultura e agilidade das startups. Nesse contexto, a controladoria desempenha papel estratégico, sendo ponte entre a visão corporativa e as demandas específicas do negócio. Reduzir sua atuação ao compliance é desperdiçar seu potencial de impacto.
A proposta de uma controladoria descentralizada, integrada e apoiada por tecnologia responde aos desafios observados no estudo de caso e pode servir como referência para outras organizações que enfrentam a complexidade de integrar startups em modelos tradicionais. O controller deixa de ser apenas um repórter de números e passa a ser coautor da estratégia. Ao adotar esse novo modelo, as empresas não apenas reduzem o atrito organizacional, mas ampliam sua capacidade de gerar valor com mais inteligência, agilidade e foco no negócio.
REFERÊNCIAS
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Byrne, S., & Pierce, B. (n.d.). Towards a More Comprehensive Understanding of the Roles of Management Accountants [Dublin City University]. http://ssrn.com/abstract=991378Electroniccopyavailableat:https://ssrn.com/abstract=991378Electroniccopyavailableat:http://ssrn.com/abstract=991378
Deloitte. (2021). “Post-Merger Integration: The Art of Execution.” Deloitte Insights.
DePamphilis, D. M. (2018). Mergers, Acquisitions, and Other Restructuring Activities. Academic Press in Imprint of Elsevier, Elsevier. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-801609-1/00019-1
Institute of Management Accountants. (2013). Evolving Role of the Controller. In The association of Accountants and Financial Professionals in Business. www.imanet.org.
Lawson, R. (2016). How Controllers. Strategic Finance, Strategic Finance, 25–31. http://bit.ly/1YxBF38
Souza, G. H. C., Wanderley, C. de A., & Horton, K. (2020). Perfis dos Controllers: Autonomia e envolvimento dos profissionais de controladoria. Advances in Scientific and Applied Accounting, 003–022. https://doi.org/10.14392/asaa.2020130301Weber, J. (2011). The development of Controller tasks: Explaining the nature of Controllership and its changes. Journal of Management Control, 22(1), 25–46. https://doi.org/10.1007/s00187-011-0123-x