Da Lei à Cultura: como aplicar a NR-01 e a Lei Promotora com intencionalidade e consistência

‎Por Raphael Rezende

Como vimos no artigo anterior, estamos colapsando em saúde mental de forma silenciosa e acelerada. Por isso, saúde mental e bem-estar no trabalho têm seguido caminhos necessários, estratégicos — e agora, de regulação. A promulgação da Lei 14.831/24, conhecida como Lei Promotora da Saúde Mental, e a atualização da NR-01 (em vigor no caráter educativo até maio de 2026, e após essa data, punitiva) marcam esse novo tempo: o tempo em que cuidar das pessoas deixou de ser opcional.

Mas o que isso muda, na prática? 

Muda que, a partir de agora, não basta mais discursar sobre bem-estar ou lançar ações pontuais no Setembro Amarelo. É preciso incorporar, de forma contínua, estruturada e mensurável, práticas voltadas à prevenção de riscos psicossociais e à promoção da saúde mental nos ambientes de trabalho.

E isso não se faz com ppt bonito. Se faz com escuta, com repertório, com gestão emocional e — principalmente — com cultura.

Nessa jornada, falo não apenas como especialista, mas como alguém que vive isso no dia a dia. Nos últimos anos, atuei como Head de Pessoas no setor de tecnologia e inovação, colaborando diretamente com a construção de cultura organizacional. Além disso, exerço minha atuação como advogado especializado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, palestrante e pesquisador do futuro do trabalho. Nesse percurso, participei ativamente da construção do projeto Lei Promotora, liderei diagnósticos em grandes empresas, formei lideranças e tenho acompanhado de perto a regulamentação. Integrei o olhar da NR-01 e da nova Lei à gestão de pessoas, à lógica jurídica e à estratégia de negócios. E se tem algo que aprendi, foi o seguinte: cumprir a lei é o mínimo — o diferencial está na intencionalidade.

Porque já vimos esse filme antes. Regras que viram checklists. Normas que não tocam a cultura. E empresas que seguem adoecendo seus times dentro da legalidade. 

Não à toa, vimos recentemente o movimento no mercado de trabalho para a prorrogação da própria NR-01, sob o discurso das empresas ainda não estarem preparadas para essa adaptação — à luz da negligência das diretrizes da norma. De fato, o legislativo deixou lacunas que dão espaço para dúvidas, e dúvidas, no Direito, muitas vezes significam inexistência. Logo, não poderia haver penalidades — daí o caráter educativo até 2026.

Alguns pontos para refletirmos:

1- Será que o ideal é seguir esperando por comandos formais e diretrizes detalhadas do governo para, só então, começar a transformar a cultura das organizações? Qual é, de fato, a intencionalidade por trás dessa espera? Construir ambientes mais estratégicos e sustentáveis — ou apenas “ganhar tempo” até o prazo final da norma, reduzindo toda essa pauta à sua aplicabilidade mínima?


Trago aqui um caso emblemático: a 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) determinou a reintegração de uma colaboradora com transtorno afetivo bipolar, demitida sob o argumento de corte de custos. O TST entendeu que a dispensa carregava estigma — ainda que sutil — por sua condição de saúde mental. A decisão jurídica foi importante, mas também revela uma ferida aberta: será que reintegrar essa profissional ao mesmo ambiente que, possivelmente, contribuiu para seu adoecimento, foi mesmo a melhor solução? Ou foi apenas a aplicação fria da norma, sem olhar para a complexidade subjetiva da experiência humana?

Imagina você retornar ao exato espaço que desencadeou seu colapso, agora depois de uma batalha judicial, emocionalmente desgastante? E do outro lado, como garantir clima, engajamento e pertencimento? O caso escancara a fragilidade estrutural das organizações — e do próprio Judiciário — quando falamos de saúde mental. Segurança psicológica, cultura e sustentabilidade de negócios ainda são conceitos pouco compreendidos e, muitas vezes, ausentes das decisões práticas.

2- E aqui entra outro ponto essencial: cada empresa tem seus próprios riscos, contextos e dinâmicas. Dificilmente encontraremos diretrizes únicas e exclusivas para cada tipo de operação, porte ou estágio de maturidade. E nem deveríamos esperar por isso. Assim como já acontece em outras normas — como a NR-17, voltada à ergonomia — a NR-01 também se apoia no velho (e eficaz) Ciclo PDCA como metodologia base. Mapear, avaliar, agir, melhorar. É isso. Funciona. Sem grandes invenções.

Então voltamos ao X da questão: devemos mesmo aguardar mais um ano? Até que ponto o tempo que estamos “ganhando” não está, na prática, nos custando muito mais caro?

3- E por falar em custo, você sabe qual é o custo real da saúde mental na sua empresa? Esse dado existe aí dentro? Gosto sempre de começar pelos indicadores mais fáceis de rastrear — os visíveis nos relatórios de gestão: aumento no subsídio do plano de saúde por CID-F (que abrange os Transtornos Mentais, Comportamentais e do Neurodesenvolvimento), absenteísmo crescente, rotatividade alta em setores específicos, aumento do passivo trabalhista. Esses são sintomas claros. Mas que muitas vezes continuam sendo tratados como “normais do negócio”.

Esses custos, por acaso, têm margem para esperar mais um ano? Ou melhor: esses custos se sustentam apenas com a aplicabilidade técnica da norma? O que o caixa da sua empresa está dizendo sobre isso?

Agora imagine se parte desses valores — que já estão sendo perdidos — fossem redirecionados para ações reais de cultura, com impacto estrutural. Estamos falando de um novo sentido de fluxo, não é só sobre o que sai, mas sobre o que poderia estar entrando. E ainda nem falamos sobre os indicadores mais sutis — mas igualmente estratégicos — como o presenteísmo, a queda na produtividade, a dificuldade de inovar ou os prejuízos na marca empregadora. Quanto estamos deixando de faturar ao não discutir saúde mental com a mesma seriedade que discutimos Google Ads, performance comercial ou lançamento de produto, por exemplo? 

4- E por que não integrar tudo isso ao que já fazemos? Outras normas regulamentadoras, como a própria NR-17, oferecem diretrizes adaptáveis. A agenda ESG também contempla diversas ações que conversam diretamente com a NR-01 — e empresas mais maduras já vêm fazendo essa integração com mais fluidez. Além disso, existe a possibilidade de, no futuro, haver incentivos fiscais ou deduções tributárias para iniciativas estruturadas em saúde mental. Ainda não há um parecer oficial, mas considerando o interesse coletivo e a crescente relevância pública do tema, é bastante provável que isso se torne realidade.

Ou seja: já temos caminhos. Já temos metodologias. Já temos recursos sendo gastos. E, se já estamos pagando essa conta, por que não canalizar esse investimento para um futuro mais estratégico e sustentável?

A pergunta que fica é: vale mesmo a pena se limitar à aplicabilidade mínima da norma?

Se realmente queremos ambientes mais saudáveis, produtivos e sustentáveis, o foco precisa mudar. E mudar agora.

A crise já está instalada — e é silenciosa

Os números são claros: o Brasil é o país mais ansioso do mundo, segundo a OMS. O segundo com mais casos de Burnout. O quarto mais estressado. Em 2024, os afastamentos por transtornos mentais cresceram 67%, gerando um custo de mais de R$ 3 bilhões à Previdência. No mundo, as perdas com depressão e ansiedade somam quase US$ 1 trilhão por ano.

Mas ainda tratamos esse tema como se fosse um problema invisível — ou pior, como se fosse caro demais para ser enfrentado.

E aqui vai outro alerta importante: caro mesmo é não enfrentar essa pauta.

E daqui para frente, o custo tende a ser ainda maior. Basta olhar para o comportamento das novas gerações que estão chegando — e chegando com força. As gerações Z e Alpha, que têm no centro de suas decisões de carreira o bem-estar, a coerência entre discurso e prática, e o compromisso com ambientes emocionalmente saudáveis, devem representar mais de 30% da força de trabalho global até 2030, segundo a consultoria McKinsey. Elas não apenas escolhem empresas — elas também decidem de quais querem sair. E fazem isso rápido.

Some-se a isso o fenômeno conhecido como Great Breakup: um movimento silencioso, mas crescente, de líderes mulheres deixando posições de alta gestão. Não por falta de competência ou ambição, mas por sobrecarga, ausência de pertencimento e ambientes tóxicos que não se adaptaram às demandas da vida real. E esse êxodo representa um enorme prejuízo — de capital humano, de representatividade e de visão de futuro.

Tudo isso aponta para o mesmo lugar: a sustentabilidade da marca empregadora está em jogo. E sustentá-la neste novo mercado não será mais uma questão de escolha para as empresas que desejam permanecer relevantes. Será uma questão de sobrevivência.

Na prática, não é só sobre compliance. É sobre consistência.

A NR-01 determina o mapeamento e a gestão dos riscos psicossociais — metas inatingíveis, jornadas abusivas, assédio moral, insegurança emocional. Já a Lei 14.831/24 certifica empresas que investem em ações de bem-estar, saúde mental e comunicação estruturada. Mas nenhuma das duas, por si só, cria cultura.

É por isso que a diferença entre cumprir e transformar está na forma como a liderança se posiciona.

De nada adianta criar um canal de acolhimento se não há escuta ativa. De nada adianta fazer um workshop de bem-estar se o time vive sobrecarregado. A saúde mental não pode ser mais uma ação para “cumprir meta”. Ela precisa ser o próprio caminho para sustentar os resultados.

O que (ainda) falta nas empresas? Reflexão + prática

Compartilho aqui um roteiro baseado no que tenho vivido em campo:

1. Não comece apenas pela planilha. Comece pela escuta.
Diagnóstico não é só formulário. É diálogo, é contexto, é leitura das entrelinhas. É entender o que não está nos números: o silêncio, o medo, o esgotamento. E, na maioria das vezes, os primeiros dados vêm enviesados — porque não há segurança psicológica para dizer a verdade. Criar essa confiança é o primeiro passo.

2. Capacite a liderança com profundidade.
Não adianta pedir escuta sem preparar quem escuta. E aqui não falamos só de habilidades técnicas, mas de repertório emocional: como conduzir conversas difíceis, acolher situações sensíveis, identificar sinais de sofrimento psíquico. Isso não nasce com o crachá. Isso se aprende, se treina e se acompanha.

3. Pare de tratar cultura como discurso de onboarding.
Cultura não é o que está escrito na missão. É o que se vive na prática. É o que se tolera, o que se reconhece, o que se repete. Se você quer transformar a cultura da sua empresa, precisa mudar os comportamentos visíveis — e isso passa por rituais, decisões, linguagem e consistência.

4. Coloque saúde mental no centro da gestão.
Turnover, absenteísmo, uso de plano de saúde, produtividade, clima organizacional: tudo isso está interligado. E tudo isso pode — e deve — ser monitorado. Porque aquilo que você não mede, você não gere.

5. Transforme boas intenções em indicadores concretos.
Quais comportamentos são reconhecidos? Quais são ignorados? Que tipo de liderança é promovida? Se sua empresa celebra o colaborador que não tira férias e ignora aquele que cuida da própria saúde, a mensagem está dada — e ela não é neutra.

6. Cuidado com o “cumprir por cumprir”.
Estar em conformidade com a norma é necessário, mas não suficiente. Conformidade não constrói cultura. E cultura, para existir de verdade, precisa de coerência, continuidade e intencionalidade.

O tempo do discurso acabou

Hoje, as lideranças precisam sustentar relações — e não apenas processos. Sustentar ambientes — e não só entregas. Sustentar pessoas — e não apenas resultados.

Esse é o novo chamado da NR-01 e da Lei Promotora: um convite à maturidade institucional. E, mais do que isso, um chamado à responsabilidade coletiva de quem tem o poder de transformar.

E aqui vale retomar uma discussão que já trouxemos no texto anterior: o risco de despejar sobre a liderança operacional todo o peso da transformação — sendo que muitas delas também estão adoecidas, sem preparo, sem apoio e sem espaço.

Mas não para por aí. Porque a liderança que carrega o “poder da caneta” — aquela que toma decisões estratégicas, define prioridades e desenha a cultura organizacional de cima — também tem adoecido. Em silêncio. E muitas vezes, sozinha. Pressionada por metas, cercada de expectativas, sem espaço para vulnerabilidade ou escuta genuína. Uma liderança que, embora tenha o poder de transformar, também precisa de acolhimento, direcionamento e acompanhamento.

É por isso que estamos falando de cultura, de estrutura e — acima de tudo — de intencionalidade no topo. Porque é aí que a mudança precisa começar.

Mudar o posicionamento institucional frente à saúde mental não é simples. Exige coragem para rever crenças, disposição para criar novos pactos e tempo para sustentar novas práticas. Mas é o único caminho possível se quisermos construir um futuro de fato sustentável — para os negócios, para as pessoas e para a sociedade.

Não à toa, a capacitação da liderança aparece como item condicional em ambas as normas. Porque, no fim das contas, o que está em jogo não é apenas o cumprimento de uma obrigação legal.

É o tipo de ambiente que estamos dispostos a construir — e o tipo de legado que queremos deixar.

Para fechar, deixo três perguntas essenciais:

  1. Sua empresa tem um canal de escuta — ou um canal de silêncio?
  2. Sua liderança sabe lidar com vulnerabilidade — ou apenas com cobrança?
  3. Sua cultura acolhe — ou adoece?

Se a resposta for incômoda, talvez você esteja exatamente onde precisa estar: no início de uma mudança real.

E essa mudança começa agora.

Raphael-Rezende_1910

CONSELHEIR@

Raphael Rezende

Raphael Rezende é Empreendedor, Advogado dos Direitos Humanos, especializado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, Palestrante sobre Saúde Mental & Bem-estar e Futuro do Mercado de Trabalho. Mentor de Carreiras com +2 mil alunas, eleito Top 100 People 2024, Vozes Visionárias LGBT+ TikTok 2024, Top 20 Creator Carreira 2024 pela Favikon, Linkedin Top Voice 2024.

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