A potencial descontinuidade de cadeias de produção e de agregação que observamos nestes dias nos traz de novo um incessante evento ocorrido nas últimas décadas: a servitização. Compreendemos este fenômeno quando nos referimos à mudança cultural ocorrida em que pensamos menos em ter produtos materiais e mais serviços, trocando a tradicional oferta do bem comprado e “levado para casa”, para nosso cotidiano, por um direito temporário de acesso e uso.
Durante algum tempo, evocando o caso de sucesso da empresa símbolo desta onda, chamamos o fato de “Uberização” econômica. O conceito, entretanto, expandiu-se. Na variação de modelos de negócios, como os SaaS, de demanda frequente (assinaturas) e de plataforma e suas variações, vemos o sucesso destas ofertas. Temos negociações que passam pelo clássico modelo de locação temporária, por novas formas de alocação dinâmicas e chegam ao simples uso eventual de propriedades de terceiros.
Esta onda de servitização agora é também confrontada pela possibilidade das ideias de apropriação nacional de produção, de certo isolacionismo econômico. É bastante fácil pensar que um modelo de smartphone ou de eletrônico doméstico seja fabricado com partes que vêm de vários cantos do mundo. Uma tarifa aqui, outra ali e temos uma nova – e provavelmente indesejável – composição de custos. Envolvida numa visão estratégica no mínimo discutível e aparentemente fora de tempo, do ponto de vista material, é possível de ser calculada e distinguida.
Mas e os serviços? Dinâmicos, de arranjo leve e rápido, movidos por dados, inteligência artificial e plataformas tecnológicas, os serviços ofertados via plataformas tecnológicas trazem a sua integração promovida lenta e robustamente, desafiando o um possível protecionismo. Se a plataforma reside num paraíso fiscal, de maneira transparente para os vários clientes espalhados ao redor do mundo, que se deslocam e se mantêm conectados à plataforma, buscando produtos e serviços em outros pontos, como isolar, dimensionar e “proteger”? Pense no marketplace que usa, cotidianamente, para adquirir seus produtos e serviços para sua casa, sua rotina diária: seguros, transporte, moradia, um sabonete, um pacote de biscoitos… cada um fornecido em um lugar, para ser usado em outro.
A servitização é um processo ainda de compreensão em andamento, embora tenha maturidade de negócios em tempo de vida. Por vezes acreditada como mera aplicação de tecnologia, chega a colocar em questionamento a perenidade de setores, determinando forças para suas mudanças. Podemos ver como a indústria automotiva, depois de encarar o desafio da servitização, assumiu a perspectiva como algo considerável. Automóveis novos e usados podem ser alugados, como bens de uso provisório, bem como as próprias indústrias, que reputavam que o uso compartilhado poderia ameaçar as novas vendas, terminaram por aderir a testes com plataformas tecnológicas.
Interessante notar que esta desmaterialização da oferta de valor se adiciona à perspectiva da desindustrialização, no que o Brasil percorreu um agressivo e gigantesco percurso nos últimos anos. Nosso mercado orientou-se rapidamente aos serviços, enquanto vemos a baixa evolução do parque industrial brasileiro, claro, com exceções exemplares, mas mesmo assim carecendo de sinais claros de avanço gerenciado e consistente.
Se, desde uma chave de fenda, passando por um automóvel, máquinas de construção civil geral e pesada e chegando até mesmo na aplicação de modelos modernos de equipamentos para diagnósticos de saúde, convivemos com atuais modelos de servitização, cabe questionar: até onde podemos chegar?
Neste momento, de pressões adicionais (e severas) por mudanças, temperamentos diversos colidem, provocando organizações de todo porte. A experiência ainda recente da servitização nos traz perspectivas de negociar valor material na forma intangível, uma aparente incoerência de modelagem de negócios. Longe disso, na atualidade, uma possibilidade de reação e resiliência competitiva. A pressão poderá derivar novas formas de servitizar ofertas, apoiando-se de maneira mais dinâmica, via dados e IA, nas negociações de usos de estruturas, ferramentas, produtos e dispositivos tecnológicos, afinal, os “materiais” clássicos.
Paradoxalmente, sendo otimista talvez ao extremo, a servitização poderá prescrever a provocação para desenvolvimento de modelos de negócios em que produtos – sim, produzidos com orientação inovadora e de contratação dinâmica – terão encontro com uma onda provocativa de sua inserção na economia.
O sucesso da servitização, da oferta imaterial pode, afinal, ser um sucesso também da indústria, via novos modelos de negócios ágeis. Que tal?